A biblioteca

Os mais de dois mil livros ocupavam a grande sala quase que inteiramente. A exceção era uma pequena mesa rústica, que vez ou outra era usada para acomodar alguns exemplares durante uma rápida consulta ou uma breve leitura. Havia também uma cadeira, mas tão desconfortável que ninguém se sentava ali há anos.
Embora os três – pai, mãe e filho – sempre utilizassem aquela biblioteca, era o garoto que a visitava como maior frequência. Passava horas selecionando cuidadosamente que livro leria dessa vez.
No momento da escolha, não era somente a sinopse do livro que contava. Aliás, isso não contava quase nada. Era preciso que existisse uma ligação entre o menino e o livro. Ele sentia a textura da capa, sentia o cheiro envelhecido das páginas e o folheava rapidamente. “É esse”, ele dizia logo em seguida. E nunca se arrependeu de uma escolha sequer.
Poucos dias depois, descia as escadas de sua casa e retornava à biblioteca. Colocava o livro que acabara de ler em seu devido lugar e selecionava outro.
Sua mãe, uma professora universitária, era quem lia os livros mais grossos. Em geral, eram sobre romances e compilações de contos, crônicas e poemas. Também lia sobre assuntos que garoto ainda não fazia ideia do que se tratava: linguística, semiótica e semântica.
O pai, um sociólogo, adorava ler sobre a indústria cultural, mas o que o realmente fascinava era a literatura moderna. Lamentava internamente pelo fato de não ter se arriscado como escritor. Quando jovem, escrevia contos e crônicas, contudo o hábito se tornou cada vez mais raro, até que deixou de existir.
Certa vez, a mãe sugeriu que o garoto lesse Alice no País das Maravilhas. Ele se negou, disse que havia lido há dois anos. Ela então insistiu e argumentou que um livro nunca é o mesmo se for lido novamente. O garoto cedeu e entendeu o que a mãe quis dizer. Dessa vez, embora o enredo tenha permanecido o mesmo, a linguagem estava mais poética e sofisticada.
“Eu não sou mais o mesmo que há dois anos. Minha mente mudou, então é absolutamente normal que a minha visão sobre o livro também tenha mudado”, pensou o garoto. Ele não estava errado, contudo, não estava tão certo quanto pensava.
A questão é que aquela biblioteca era mágica. Bom, todas as bibliotecas são, na verdade. Só que aquela possuía uma característica que a tornava ainda mais especial. De certa forma, os livros se comunicavam.
Claro que eles não conversavam em voz alta, mas possuíam o seu próprio sistema de comunicação. E ele era extremamente eficiente…
Os livros colocados lado a lado trocavam informações. Absorviam fragmentos do outro e davam um pouco de si. Alice no País das Maravilhosas estava posicionado ao lado de O Pequeno Príncipe, o que explicava porque a sua linguagem agora estava mais poética. Ele havia se transformado!
O exemplar de O Pequeno Príncipe também já não era mais o mesmo. Se o menino o relesse, notaria que agora os personagens estavam um pouco mais psicodélicos e interessados em brincadeiras que desafiavam o cérebro.
Os livros, entretanto, possuíam livre arbítrio. Só se modificariam se permitissem que isso ocorresse. Mas na maioria das vezes, eles permitiam. Então o existencialismo de Sartre se juntava às metáforas de Oscar Wilde; a delicadeza de Cecília Meirelles se encontrava com o humor de Manoel de Barros; e os demônios imaginários de Stephen King se encontravam com o vampiro real de Bram Stoker.
Porém, em alguns casos, a troca entre os livros era mínima. Às vezes nem aconteciam. O Capital (Karl Marx) e A Riqueza das Nações (Adam Smith) estavam entre as obras que continuaram exatamente iguais mesmo após terem tido contato uma com a outra.
O mesmo aconteceu com a Bíblia, que estava colocada ao lado de Deus, um delírio, obra do ateu Richard Dawkins. O posicionamento desses livros, colocados um do lado do outro, soa como piada de mau gosto (tanto para religiosos quanto para ateus), mas estavam assim dispostos porque a religião é uma das principais áreas de pesquisa do pai do garoto.
Por outro lado, algumas influências se tornam tão grandes que fica até difícil escondê-las. Uma vez, a mãe do garoto lembra que estava relendo um livro do Fernando Pessoa e então se deparou com versos extremamente politizados. Ela sabia que aquela não era a mesma escrita de Pessoa que lera anos antes. Então observou que ao lado do livro do poeta português estava um de Maiakovski, autor russo conhecido como o poeta da revolução.
Ela comprou um livro do Fernando Pessoa igual ao que tinha em casa, comparou os dois exemplares e entendeu que algo realmente tinha se modificado. Ela entendeu o que havia acontecido e passou a se divertir com isso. Passou a fazer combinações óbvias, como Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, mas também combinações improváveis, como Leminski e Neil Gaiman.
Manteve isso em segredo, embora vez ou outra desse algumas dicas ao marido e ao filho. Mais do que nunca, passou a adorar reler livros, pois agora ela entendia que não era somente ela que se modificava entre uma leitura e outra. Os livros também faziam isso. E como faziam bem…

 

Bruno da Silva Inácio é jornalista da Tribuna de Ituverava, especialista em Gestão Cultural, Literatura Contemporânea e em Cultura e Literatura. Cursa pós-graduação em Filosofia e Direitos Humanos e em Política e Sociedade. É autor dos livros “Gula, Ira e Todo o Resto”, “Coincidências Arquitetadas” e “Devaneios e alucinações”, além de ter participado de diversas obras impressas e digitais. É colaborador dos sites Obvious e Superela e responsável pela página “O mundo na minha xícara de café”.