Dia mundialsem carne

Prelúdio
No princípio era o nada. E do nada fez-se o pouco. Negou um cigarro ao morador de rua. “Só tenho esse”. Se arrependeu da mentira vinte e dois minutos depois. Buscou com os olhos o andarilho. Não encontrou. Levaria para a terapia.

Dicotomia
Descalços, os pés tocam os pisos que imitam madeira. Dia produtivo. Descanso merecido. Liga a TV para relaxar. Se irrita três minutos depois. Relatos distorcidos. Abordagens questionáveis. Sobem os créditos. A mesma música de vinte anos atrás.

Lembrete
O livro na página cento e sessenta e sete. Ainda faltam quarenta e nove. A vontade é de terminar ainda esta noite. O sono não deixa. “Amanhã preciso tomar mais água”. Último pensamento antes do sonho clichê em que cai da escada.

Formigas
Às cinco e doze o fracasso é certo na tentativa de organizar os pensamentos. Olha fixamente para a mesa. Caminham em fila. Algumas levam pequenos fragmentos daquilo que na noite anterior eram restos de comida. Agora foram ressignificados. Como um jornal que se torna embrulho pra peixe após ser lido.

Ego
Dois olhos ainda procuram o morador de rua. O cigarro destinado a ele está em suas mãos. Não o encontra. “Quem sabe amanhã?”.

Experimental
O desconexo salta à sua frente. Cores vivas, odores que lembram a morte. Memória afetiva. A linguagem estruturada por meio da matemática. A cabeça dói. Manhãs não combinam com pensamentos soltos.

Vidro
O som é agudo. Familiar. Dura pouco. Dois cacos grandes. Treze pequenos. Vinte e um quase milimétricos. Esses são os mais perigosos. Certamente uma pesquisa já comprovou. Estatísticas são confiáveis para setenta e oito por cento das pessoas.


Trabalho

Tom ameno. Elogios feitos no automático. Os egos inflam. Missão cumprida. Meia dúzia de palavras gentis substituem aumentos salariais. Não cai mais nessa. Mesmo assim, o aumento não vem.

Superstition
Stevie Wonder na rádio torna mais suportável a espera no semáforo. Oito carros à frente. O sinal vai abrir e vai fechar novamente antes que consiga atravessá-lo. “Brokethelookin’ glass/Sevenyearsofbadluck”.

Saudade
Suco de laranja sempre gera um estado letárgico. Associação com a avó morta. Língua dormente. Calafrio. Dura nove segundos. Parece uma hora.

Terapia
Conta três histórias vividas naquela semana. Uma morte. Uma dissociação. Um cigarro negado. Fala como se fossem cenas de uma peça de baixo orçamento. Cai o pano.

Bloqueio
Encara a tela do Word há setenta e quatro minutos. Nenhuma palavra. É possível contar uma história sem ter história a contar?

Coluna
O sofá causa dores em três locais diferentes. Levanta a cada quarenta minutos. Se estica. Abre a geladeira. Se olha no espelho. Ainda é capaz de se reconhecer.

Chá
Sopra duas vezes. Queima a língua. Xinga. Mais ácido que ontem. Nada para acompanhar. Prefere assim.

Pomba
O pássaro despedaçado à beira da calçada é um lembrete. A imagem fica na cabeça por quarenta e seis minutos. Penas. Sangue. Bico.

Cãibra
Caminha até o trabalho. Três quilômetros. A perna direita dói. A esquerda parece anestesiada. Se ao menos tivesse encontrado o morador de rua…

Bruno da Silva Inácio é jornalista, mestre em Comunicação e pós-graduado em Literatura Contemporânea, Política e Sociedade e Cultura e Literatura. Atualmente cursa quatro especializações (Cinema, Teoria Psicanalítica, Antropologia e Gestão da Comunicação) e reside em Uberlândia, onde trabalha como assessor de imprensa da Prefeitura.
É autor dos livros “Gula, Ira e Todo o Resto” e “Devaneios e alucinações”, participante de outras quinze obras literárias e colaborador da Tribuna de Ituverava e dos sites Obvious, Provocações Filosóficas e Tenho Mais Discos que Amigos.
Também manteve, entre 2015 e 2019, a página “O mundo na minha xícara de café”, que chegou a contar com 250 mil seguidores no Facebook.