O monólogo revela uma habilidade inexistente, ainda que necessária. Atropela palavras. Busca refúgio em pontos fixos. Falha no convencimento e na fuga improvisada.
O menino que passa, percebe. E não deixa barato. Ri de canto numa contradição ao discurso sobre a pureza das crianças.
Os silêncios ferem tanto quanto as palavras ríspidas.
Na caixa surrada de isopor, as pamonhas desaparecem uma a uma, num ritmo frouxo e descabido. O pai mente no olhar que tá-tudo-bem, que daqui a pouco estarão em casa.
Talvez até com um refrigerante de dois litros bem geladinho para acompanhar o prato de arroz, feijão e bife.
O filho finge que acredita. Ensaia as próximas frases, quer soar mais confiante e menos ele mesmo. Quer se fazer ouvir, orgulhar o pai e correr para contar à mãe quantas pamonhas vendeu naquela tarde.
Tenta. De verdade. Mas a voz não sai.
Do outro lado, o olhar de quem não tem tempo a perder pressiona. Exige uma justificativa para ter sido incomodado por um adolescente espinhento às três da tarde.
A voz, enfim, sai. Trêmula e rouca. Abarca palavras decoradas. Empurra frases mal construídas. Até considera uma tréplica depois de ouvir um não. Mas desiste e agradece. Parte para a casa ao lado.
Bate palmas e torce para que ninguém atenda.
O filho inveja a confiança do pai. O sorriso, a escolha das palavras e os maneirismos para transformar qualquer não em sim. O pai, quando diz boa tarde, não parece invadir espaços nem abordar desconhecidos.
Comenta sobre o clima e o futebol e o quanto uma pamonha seria o acompanhamento ideal para um café coado na hora. O filho observa cada movimento e frase. Tenta entender o mecanismo e reproduzi-lo, uma teoria que se nega a abraçar a prática.
Às vezes dá sorte e escolhe a casa certa. Oferece uma só vez e recebe de volta um sorriso interessado. Apressa os passos rumo ao carro e finge naturalidade ao contar ao pai que, sim, a senhora quer comprar algumas pamonhas.
Nesses raros momentos do dia se sente um vendedor bem-sucedido, alguém capaz de transformar um não em um sim, ainda que nunca tenha feito isso de fato.
O pai dá dois tapinhas nas costas do filho. Tenta acreditar que tem ali o melhor parceiro de vendas que poderia encontrar. Encara o volume cada vez menor de pamonhas na caixa de isopor e quase acredita que a vida é boa.
Por um momento, pensa ser feliz. Logo depois, se lembra do desemprego que o arrastou àquela situação, dos currículos distribuídos em vão e do refrigerante que não estará à mesa no jantar.
Recompõe-se de imediato.
Pobre não tem tempo para crise existencial.
E ainda faltam quinze pamonhas.
Quem compra as últimas, sempre leva vantagem. O pai já está cansado. O dia já vira noite. Não há força para novas abordagens. Ele escolhe uma casa que parece abrigar muitos moradores.
Bate palmas e espera. Oferece quinze pamonhas pelo preço de sete. Nessas ocasiões, vence mais pela cara abatida que pelo discurso de bom vendedor.
A caixa de isopor, enfim, está vazia.
Na volta para casa, o cansaço divide espaço com a sensação de dever cumprido. O pai imagina um novo emprego. Um que permita refeições que não se limitem a arroz, feijão e bife.
O filho elabora táticas para ser um vendedor melhor, constrói novas frases e planeja réplicas.
O silêncio dura toda a volta para casa. Tanto o pai quanto o filho sabem que qualquer palavra poderia afastar a beleza que reside naquele pedaço de tempo.
Bruno da Silva Inácio é jornalista, mestre em Comunicação e pós-graduado em Literatura Contemporânea, Política e Sociedade e Cultura e Literatura. Atualmente cursa quatro especializações (Cinema, Teoria Psicanalítica, Antropologia e Gestão da Comunicação) e reside em Uberlândia, onde trabalha como assessor de imprensa da Prefeitura.
É autor dos livros “Gula, Ira e Todo o Resto” e “Devaneios e alucinações”, participante de outras quinze obras literárias e colaborador da Tribuna de Ituverava e dos sites Obvious, Provocações Filosóficas e Tenho Mais Discos que Amigos.
Também manteve, entre 2015 e 2019, a página “O mundo na minha xícara de café”, que chegou a contar com 250 mil seguidores no Facebook.