Um pouco mais próximo do que deveria

– Prossiga, Sr. Moraes. E não me faça mais perguntas!
– Na primeira vez que a vi, naturalmente estranhei a minha reação. Deveria ser, na minha posição, mais uma entre tantas pacientes da tarde daquela quarta-feira. No entanto, não foi. Minha secretária anunciou o seu nome e então ela entrou. O primeiro passo foi com o pé esquerdo. Os cabelos presos em um coque, os óculos de grau maiores do que deveriam para o seu formato de rosto, os lábios carnudos, a blusa decotada, revelando seios fartos, o jeans desbotado e o tênis sujo. Um all star ou algum modelo parecido, se minha memória não falha. Cumprimentei-a com um breve movimento do rosto e estendi o braço direito, mostrando-lhe o divã, onde deveria se deitar. Apenas se sentou. Pedi para que ficasse em uma posição que a relaxasse, e ela respondeu que já estava. Então piscou. Ignorei o seu gesto e pedi para que contasse o que a trazia ali. Respondeu que era o desejo contínuo pelo inalcançável. A cada palavra que saía dos seus lábios, eu balançava afirmativamente a cabeça. Não era apenas um sinal de que eu a ouvia. Eu estava concordando com cada frase, cada palavra, cada sílaba…
– Ela lhe contou sobre algum plano?
– Que plano?
– Por favor, sem perguntas por enquanto. Já lhe disse.
– Bom, eu não acredito que havia nenhum plano. Ela me contou suas tristezas, suas dores e solidões. Contou segredos íntimos. Falou sobre os seus pesadelos recorrentes, a fobia de animais empalhados… Se houvesse um plano relevante, certamente me contaria, mesmo que não fosse por linguagem verbal. Eu avaliava cada um de seus movimentos. Tudo condizia com o que saía de sua boca. Em momento algum, em qualquer uma das sessões, ela mentiu.
– A propósito, foram quantas sessões?
– Sete, no total, além de um almoço…
– O Sr. tem o hábito de almoçar com todos os seus pacientes?
– Na verdade não. Procuro, inclusive, não me envolver em suas vidas pessoais…
– Com Camila, no entanto, foi diferente…
– Suas solidões eram iguais as minhas. Suas noites mal-dormidas, seus livros espalhados pelo chão, seu e-mail que só recebia propagandas, seu telefone que só tocava quando era engano.
– A diferença é que o Sr. sabe lidar melhor com essa solidão…
– O que quer dizer? Ah, já sei… Sem perguntas… Camila também sabia lidar com a sua solidão. Ela até se divertia com isso. Fazia piadas, algumas até muito boas.
– Isso é irrelevante, Sr. Moraes. Fale sobre o almoço… Diria que estavam emocionalmente envolvidos?
– O almoço foi ontem, no La Vie, lá no centro. Comemos o prato do dia. Era arroz, batata na manteiga, frango grelhado e salada. Para acompanhar, pedi um suco, e ela um refrigerante. Não era algo premeditado. Ela me ligou e disse “Ei, viu como as nuvens estão formando desenhos engraçados hoje?”. Respondi que não havia reparado. Estava na sala de estar lendo um artigo. Ela então sugeriu que eu a encontrasse. Falou que poderíamos rir das nuvens e depois almoçar. Eu a encontrei próximo ao centro. As nuvens, na verdade, não estavam tão engraçadas assim, mas renderam algumas risadas. De lá fomos ao restaurante, e assim passamos aquele início de tarde.
– Sr. Moraes, eu lhe perguntei se estavam envolvidos emocionalmente.
– A sua pergunta é muito ampla, muito genérica… Todo mundo está envolvido de alguma forma. Até mesmo o senhor e eu. Criamos um vínculo, uma relação interpessoal. De isso, surge um sentimento, mesmo que não notório…
– O Sr. entendeu muito bem o que estou dizendo…
– Dizendo não. O Sr. apenas insinua… De qualquer forma, se quer saber se eu a considerava atraente, a resposta é sim. Se quer saber se fiz sexo com ela, a resposta é não.
– Mas gostaria?
– Claro que gostaria. Quem não gostaria? Vai me dizer que o Sr. não a desejou quando a viu?
– Sr. Moraes, a minha paciência não é tão grande quanto pensa…
– Peço desculpas, policial. Não quis lhe ofender.
– Vocês se beijaram naquele dia?
– De modo algum.
– Ela o rejeitou?
– Na verdade não. Foi tudo muito confuso. Após o almoço, nos sentamos em um banco próximo ao restaurante. Conversamos sobre jazz e rock. As nuvens se moviam rapidamente, formando novos desenhos a cada segundo. Às vezes conseguíamos ver a mesma coisa, outras víamos seres ou objetos totalmente distintos. Ela tentou me provar que onde eu enxergava um pássaro havia um macaco. Neguei-me a acreditar. Ela sorriu e então aproximei os meus lábios dos dela, certo de que nos beijaríamos. Ela recuou. Pedi desculpas. Camila se levantou e disse que precisava resolver algumas questões. Insisti para que ficasse, mas ela já caminhava a passos largos, gritando para que não a seguisse. Fumei um cigarro no banco da praça e fui para casa. Hoje ela não apareceu na sessão. Mais tarde, recebi apenas um e-mail escrito “And in the end the love you take…”. É um trecho de uma música dos Beatles da qual falamos durante o almoço de ontem. O verso completo é “And in the end the love you take is equal to the love you make”. Traduzindo ficaria “e no fim o amor que você recebe é igual ao amor que você faz”. Só não entendi porque o verso veio incompleto. Tentei contatá-la, mas não consegui. Até que vocês me ligaram e disseram que ela estava aqui, presa, e que havia pedido para que me mostrassem algo. Afinal, será que agora, que contei tudo que sei, poderia me contar o que está acontecendo? O que foi que Camila fez e o que é que ela quer me mostrar?

Bruno da Silva Inácio é jornalista da Tribuna de Ituverava, especialista em Gestão Cultural, Literatura Contemporânea e em Cultura e Literatura. Cursa pós-graduação em Filosofia e Direitos Humanos e em Política e Sociedade. É autor dos livros “Gula, Ira e Todo o Resto”, “Coincidências Arquitetadas” e “Devaneios e alucinações”, além de ter participado de diversas obras impressas e digitais. É colaborador dos sites Obvious e Superela e responsável pela página “O mundo na minha xícara de café”.