Queria que esse choro parasse. Poder desvendar em segundos o seu motivo-desejo, para então concretizá-lo. Apenas para ter de volta o silêncio. O meu silêncio. Tão raro desde que você chegou.
Também me aliviaria poder dizer isso em voz alta, saborear cada sílaba. Dividi-las da maneira mais adequada para mim e não como determina a gramática.
Há nesse desejo pelo silêncio uma agressividade que não consigo enxergar. Uma violência-tabu. Intocável. Inquestionável. Passa pelo amor-incondicional-materno (conceito complexo e ainda tão novo pra mim).
Não me soa como crível uma relação em que não há espaço para o “eu te amo, mas…”. Na maternidade não nos é dado o espaço do “mas”.
Ainda que ele exista. Nas olheiras. No cansaço. Nas respostas curtas. Nos sorrisos vagos. Na insistência em classificar como instinto algo que, sequer, me soa como natural.
Amar exige esforço.
O desejo pelo silêncio não representa um arrependimento. Uma desistência. Ou qualquer bobagem dessas. É apenas uma vontade de romper com o que há de mais sagrado. E poder dizer, em voz alta, “eu te amo, mas…”.
Quando recebo visitas, preciso ser ainda mais performática. Responder às mesmas perguntas de sempre. Ouvir as sugestões de quem viveu essa situação uma ou duas ou três vezes.
E que por isso sabe o que está dizendo. Ao contrário de mim. Mãe de primeira viagem, como insistem em lembrar em cada visita ou telefonema ou mensagem.
Sara é o que tenho de mais importante. Isso eu entendo. Desde quando nasceu e sem esforço algum. Também por isso, seria libertador estabelecer limites entre o que me encanta e o que me desgasta.
Não quero fazer queixas desproporcionais nem colocar um peso exuberante à existência da minha filha. Quero apenas poder dizer que, sim, estou cansada.
Que sinto saudade do silêncio e que é absurdo ter que dizer, especialmente a Fernando, que essa responsabilidade não é inteiramente minha.
Já não aguento mais o seu sorriso-de-dever-cumprido por ter se levantado uma ou duas vezes na madrugada ao longo da semana. Ou os seus pedidos decorados de desculpa quando digo que estou sobrecarregada. Que não durmo bem há semanas. E que não tenho disposição para receber tantas visitas.
Percebo desconfiança disfarçada de carinho nos olhares de meus pais e sogros. Afinal, sou mãe de primeira viagem.
Mesmo com a pulga atrás da orelha, reforçam que cabe à mãe esse papel. Se apoiam em discursos falaciosos que passeiam entre a biologia e a religião.
Sou comparada a diversos animais e a personagens bíblicos que provavelmente nem existiram. Sei, mas não falo em voz alta. Seria blasfêmia.
Assim como dizer que estou cansada.
Tenho tido o mesmo sonho. Noite sim, noite não. Uma caixa amarela em cima do sofá. Não tem fundo nem tampa. Começo a colocar algumas frutas. Bananas e maçãs e mangas e goiabas. Elas desaparecem e ressurgem em cima da mesa da cozinha. Repito o processo até ser interrompida pela campainha.
Pelo olho mágico, percebo cinco ou seis pessoas. Ao fundo, muitas outras descem de um ônibus.
Caminham rapidamente rumo à porta. Conto até três, ensaio um sorriso e abro. É quando sou teletransportada para dentro da caixa. Flutuo na escuridão de raro conforto. Até que sou interrompida pelo choro estrambelhado de quem mais amo.
“Pode deixar, eu vou”, diz Fernando pela segunda vez na semana. Abre o sorriso-de-dever-cumprido e dá passos barulhentos até o quarto ao lado.
BRUNO ÍNACIO
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá), “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros) e “De repente nenhum som” (Sabiá Livros).
É colaborador do Jornal Rascunho, do Le Monde Diplomatique e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Rolling Stone Brasil e Estado de Minas Gerais.