Eurico e a preguiça de morrer

O que Deus nunca revelou à humanidade é que ninguém morre quando se está velho, a não ser que queira. É claro que existem as exceções. O tombo impiedoso, o assaltante em busca de uma vítima frágil e o motorista que não conseguiu frear a tempo. Mas uma doença não significa uma sentença de morte. A verdade é que, com o passar dos anos, tudo fica monótono. A disposição é cada vez menor e a ajuda se torna indispensável. Por fim, a morte parece uma escolha óbvia. Em determinado momento – em meio à dor física ou emocional – os olhos se fecham, e então a alma é entregue ao seu destino, seja ele bom ou ruim.
Com Eurico não era assim. Ele já havia percebido que Deus não conseguiria tirar a sua vida de forma natural, então continuou a viver. Estava com 131 anos e, é claro, cheio de limitações. Possuía, entretanto, muita energia para a sua idade. Por preguiça, acabou se esquecendo de gastá-la enquanto jovem. Agora, careca, encolhido e com dentadura, as coisas não eram tão diferentes. Sim, ele possuía muita energia, mas não significa que a usava. Continuava preguiçoso. Vivia por viver. Todos os jornais gostariam de entrevistá-lo. Todos os repórteres queriam lhe perguntar o segredo da longevidade. Estaria naalimentação? Prática esportiva? No amor? Não, era na preguiça. Mas isso eles jamais descobririam. Eurico tinha preguiça até de dizer “alô” ao atender ao telefone. Jamais falaria por longos minutos com jornalistas intrometidos.
Sua vida de idoso era rotineira, assim como na infância, juventude e vida adulta. Mas ele não percebia isso. Tinha preguiça de enxergar a verdade, de fazer reflexões, de se questionar. Não era feliz, porque isso exigia sorrisos. Também não era triste, porque isso exigia lágrimas. Havia descoberto o segredo de Deus, mas nem sequer notou isso.
Em uma tarde, deitado como o de costume na cama desarrumada, se lembrou de muitos que passaram pela sua vida. Todos já haviam morrido e nunca foram presentes em sua vida. Eurico tinha preguiça de relacionamentos. De ter que conversar, rir, desabafar e ouvir tolices. Preferiu a vida só, e foi exatamente como ele previu. Sim, em determinado momento de sua vida, não teve preguiça de pensar sobre o futuro. Agora, esse dia, que parecia esquecido, voltou à tona.
Percebeu que tudo havia saído exatamente como ele quis, dia após dia. Imaginou que em décadas tudo estaria igual. Ficou surpreso quando percebeu que não estava feliz com aquela possível realidade. Fechou os olhos, afastou todos os pensamentos e entregou sua alma. Longos minutos depois abriu os olhos. Ainda estava vivo. Tinha preguiça até de morrer. Decidiu que esperaria. Quem sabe um tombo, um assaltante ou um motorista imprudente.

Bruno da Silva Inácio cursa mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, é especialista em Gestão Cultural, Literatura Contemporânea e em Cultura e Literatura.
Ele Cursa pós-graduação em Filosofia e Direitos Humanos e em Política e Sociedade. É autor dos livros “Gula, Ira e Todo o Resto”, “Coincidências Arquitetadas” e “Devaneios e alucinações”, além de ter participado de diversas obras impressas e digitais.
É colaborador dos sites Obvious e Superela e responsável pela página “O mundo na minha xícara de café”.